GODOFREDO DE OLIVEIRA NETO – O Bruxo do Contestado (1996)


25/11/2014
Ana Russi

Terminei ontem de ler O Bruxo do Contestado, romance do professor Godofredo de Oliveira Neto, nascido em Blumenau e atualmente residente no Rio de Janeiro (você pode clicar aqui e conferir a entrevista que o autor concedeu ao Sarau Eletrônico da Universidade Regional de Blumenau em 2008).

Na verdade, eu devorei o livro, pois tanto a trama quanto sua riqueza de informações históricas me deixaram muito, muito instigada.

A história se passa na cidade de Diamante, situada na região do Contestado, a qual entre 1912 e 1916 serviu de cenário à guerra que mesclou o fanatismo religioso “à busca de um reino de paz e igualitarismo social”. Cerca de metade do exército brasileiro atuou no território durante a Guerra do Contestado, o que resultou em 4.500 mortos e mais de 10.000 feridos. Na contracapa, é considerada uma revolta muito mais ampla do que a de Canudos, embora seja curiosamente ignorada pela historiografia oficial.

Ironicamente, a história não se passa durante a Guerra do Contestado. Ela acontece depois, na Diamante da década de 1940, cidade ocupada ao mesmo tempo por comunidades Xokleng e descendentes de alemães e italianos, de maneira que a iminência da II Guerra Mundial coloca seus habitantes em estado de agitação.

Oliveira Neto descreve como a aproximação da Grande Guerra tornou as memórias do Contestado mais vivas e próximas – em especial na figura de Gert Rünnel, um protagonista instável e atormentado. Embalado pelas lembranças de infância, ele ainda sonha com a definitiva consolidação do “reino da justiça de Irani” – promessa dos movimentos messiânicos locais que efervesceram na época do conflito. Seus delírios são conhecidos por toda a comunidade local, rendendo-lhe o apelido de Bruxo do Contestado.

O autor se preocupou em trazer uma abordagem sóbria do conflito. A Guerra do Contestado é vista não somente como uma revolta fundamentada na fé, mas também como um grito pelo direito à terra, permitindo sonhar com uma organização em que todos tivessem igual acesso aos recursos básicos através da consolidação desse reino messiânico de “paz e fartura”. Essa perspectiva é suscitada em vários trechos e propõe uma reflexão diferente da abordagem superficial dos livros escolares. Em meio a um grande encontro de ideologias, evocadas por diversos grupos políticos, a mais sóbria análise da revolta do Contestado está no capítulo 15, por conta do Grupo de Defesa da Democracia, de orientação socialista.

Entender o que aconteceu no Contestado é importante para acompanhar a vida dos Rünnel, principalmente os delírios de Gert. Mas essa não é a única narrativa de O Bruxo do Contestado. Um roteiro paralelo explica a origem do livro, a partir de originais encontrados em um casarão em demolição na capital paulista, o qual pertenceu à família Johansky, dona de uma rede comercial espalhada por toda a região sul. Sua autoria é atribuída a Tecla, filha dos proprietários da casa e ex-militante trotskista que, acometida por um grave problema de saúde, escreveu essas memórias baseadas na infância em Diamante e na convivência com os Rünnel. Tecla propositalmente deixou seus escritos nas ruínas do casarão. Outros personagens (Victor, Bertha, Dieter, Elsa, Arcângelo, Otto, Antônia e a própria família Johansky, entre outros) também avolumam a riqueza da trama, dialogando com ela através de suas histórias pessoais.

Falando desse jeito, pode parecer que a obra é confusa, de uma complexidade excessiva. Muito pelo contrário: o autor entrelaça delicadamente todas essas histórias, mantendo a devida coerência. E, de certa forma, os fatos históricos ajudam a dar a consistência necessária à trama.

As narrativas – e seus entrecruzamentos – são permeadas por elementos de relevância para a história de Santa Catarina que vão além dos temas do Contestado e da Segunda Guerra: o Falanstério do Saí – comunidade socialista de São Francisco do Sul, baseada nas ideias de François Fourier –; a passagem de Olga Benário por Florianópolis; as correspondências entre Fritz Müller e Charles Darwin. Oliveira Neto sugere até mesmo o diálogo entre sindicalistas da Inglaterra e da Rússia e os líderes populares do Contestado, e o suposto interesse de Lênin nos acontecimentos – fato que teria motivado a nomeação do catarinense Lauro Müller para ministro das relações exteriores.

Inevitavelmente, terminei o livro pensando no tanto de coisas que aconteceram, tendo o estado como cenário – e no meu conhecimento superficial da maior parte. A outra parte então, era completamente desconhecida!

A crédito dessa intensa pesquisa que permeia o roteiro, e levando em consideração que a primeira edição do livro saiu em 1996 (quando a internet no Brasil era um privilégio de poucos), não dá pra encerrar a resenha sem salientar o competente levantamento histórico feito pelo autor. É ele que aproxima o leitor da obra, alimentando sua curiosidade não somente sobre o decorrer das muitas tramas (todas altamente interessantes), mas também acerca de quais novas descobertas históricas ocorrerão nas páginas seguintes. É isso que faz com a que O Bruxo do Contestado se realize tal qual foi descrito na orelha do livro: um romance em que a dimensão histórica e o destino individual se correspondem de maneira densa, perturbadora e surpreendente!
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REFERÊNCIAS:
OLIVEIRA NETO, Godofredo. O bruxo do contestado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.