Profeta para além do mundo

27/11/2014
Por Míriam Santini de Abreu*
Blog Pobres & Nojentas


O Seu Claico aparece no local onde trabalho quase todos os dias. Magro, olhos azuis intensos, calça e camiseta impregnadas de cheiro de suor, ele acumula uma quantidade imensa de papéis em diferentes pastas. Nós o chamamos de Senador, porque ele se auto-nomeou líder político nacional de um ou de vários partidos no Senado. O que sei de Seu Claico, além do sobrenome, Xavier Fernandes, é o nome dos pais e da rua e bairro onde ele mora na Capital, além do fato de ter um irmão. Ah, e a cidade onde ele nasceu, em SC.
Seu Claico, o "Senador"
(foto: Míriam Santino de Abreu)

Isso porque, sempre que chega, Seu Claico pede que carimbemos um ou mais textos seus e que façamos uma ou duas cópias desses exemplares, nos quais ele anexa sua carteira de identidade. Nota-se que o Senador, que está sempre a caminhar no Centro de Florianópolis e no campus da Universidade Federal, passa por vários órgãos públicos, e sempre há alguém que digita os escritos feitos à caneta, em letra espinhenta que se alastra nas linhas. 

Num deles, Seu Claico se auto-denomina técnico de futebol da Seleção Brasileira e lista suas contribuições ao futebol brasileiro e mundial, como: a bola leve profissional, as joelheiras acolchoadas, o apito profissional e as luvas para jogadores.

Em outro ofício, o Senador se auto-intitula chefe de segurança da UFSC e criador da Otasa (Organização dos Tratados do Atlântico Sul-Americano). Num parágrafo, ele acrescenta: “Eu, Claico [...] sou o criador das luzes a laser, do adubo orgânico, do macro-computador, do telefone com tela das cintas plásticas, as armas a laser, do aero-brazer, do carro do futuro, da linguagem comum para computação mundial, da imagem e som para computação mundial, dos telões, dos vidros planos, dos vidros impermeáveis, dos aços impermeáveis, do freezer, das agulhas a laser, da enceradeira que encera e lustra, enfim, ALELUIA, outras coisas”. Em outra carta, a Otasa vira uma organização dos trabalhadores do Atlântico Sul.

Dia desses, quando ele esteve aqui para fazer umas cópias e carimbar vários ofícios, pedi um cargo (uma carta revela que em 2012 ele me indicou, em ofício, vereadora, com mais umas três dezenas de nomes, incluindo o de Lygia Fagundes Telles e de um certo Beto Leão do Beco):

- Mas eu já te nomeei!
- Para quê?
- Para o STF!
- Mas Seu Claico... Eu vou ficar entediada no STF!
- Entediada?
- É... O dia inteiro trancada lá naqueles gabinetes! Que horror!
- Ah, tu não quer ficar entediada? Então pega a tua pasta ali e vai lá para fora, para a rua, porque tem um monte de problemas pra resolver!

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Muitos dos escritos do Senador são de sua lavra. Ele chega, cumprimenta (outro dia o cumprimento foi: “a bruxa tá solta!”. Houve uma tarde em que abriu a porta e anunciou: - Tem gente morando em cavernas aqui na cidade!), pede um cafezinho, senta e começa a escrever, sem parar de murmurar para si mesmo. Outros textos, que ele pede para reproduzir, já vêm digitados. Também seriam dele, e apenas digitados por seus colaboradores em órgãos públicos e entidades municipais, estaduais e federais, como revelam os carimbos nas folhas?
Carta dele de 2012, como diretor da UNICEF, mostra ser oportuno discutir, em nível mundial, a situação da criançada no mundo, nesses termos.

Outra de 2012, uma Nota Oficial, anuncia o casamento do Senador com uma certa senhora, cujo nome omito porque é conhecida na cidade. Ela decidiu, diz a nota, assumir um compromisso social com o cantor e compositor Clássico Fernandes, ou Claico Fernandes. Enlace matrimonial na Catedral da Sé e recepção no Clube Paulistano e no Iate Clube do Rio de Janeiro.

Há uma carta escrita por ele, à caneta, curiosa. O assunto é a denúncia do ex-presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, que reclama de ofensas e calúnias propagadas pelo Senador e exige da Justiça Internacional dez trilhões de libras esterlinas.

- Eu acho ser um direito do Ressuscitado! – escreve o Senador.

Na carta ele se defende junto à Suprema Corte Internacional, especificamente ao Juiz Federal Paul Gallotti, se auto-intitula um vagabundo por morar onde mora (cita rua e bairro) e conclui:
“Até parece uma piada, morador de Barraco no Brasil é obrigado a pagar 10 trilhões de libras esterlinas a morador do bairro de Boston em New York em USA”.

Não localizei a segunda página desta carta no monte que guardo, de quase uns dez centímetros de altura, de ofícios entregues a mim pelo Senador. Mas encontrei uma carta já digitada, como o mesmo conteúdo, que assim termina:

“Sua Excelência, se observa o absurdo do assunto, uma vez que se o citado vagabundo tivesse dinheiro iria morar numa mansão, isso até parece piada”.

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O Senador, que se proclama O Dominador das Mídias, já oficiou no interesse da comunicação, como em uma carta de dezembro de 2010: “A liminar jurídica trata-se de agradecer Sua Excelência, a Senhora Presidenta da República, Dra. Dilma Roussef, pelo fato de confirmar aquilo que é de direito com relação à minha solicitação de concessão nos meios de comunicação de rádio e televisão convencional e em TV a cabo via satélite para o mundo bem como o direito de evitar o jornal do Claico e a revista do Claico em edição nacional e mundial, uma vez que eu me preocupo com o verdadeiro jornalismo e que, inclusive, por causa disso, já fiz algumas denúncias na Justiça Federal de Santa Catarina (cita o endereço), uma vez que meu conceito com relação à verdade contraria os interesses de terceiros”. 

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Mais um diálogo com o Senador em dia de visita onde trabalho:

- Como vai a senhora?
- Bem, Senador, e o senhor?
- Bem, sempre me reinventando.
- Reinventando?
- Claro, todos os dias a gente tem que tem emoções e pensamentos novos.

(foto: Míriam Santino de Abreu)
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Quem digitar “Carta do Claico” na internet irá encontrar um blog que lançou a campanha “Em Busca das Cartas Perdidas” para fazer um compêndio sobre a vida e trajetória do Senador. Ele volta e meia pede que a gente consulte novidades sobre seus ofícios na internet, e recentemente passou a carregar consigo um pendrive com arquivos das cartas.

Foi nesse blog que encontrei um fato surreal sobre o resultado das andanças do Senador na cidade. Está no Diário da Justiça de Santa Catarina, Ano XLVI, Número 11.283, de 24 de setembro de 2003. Há um Despacho do Tribunal Pleno em Mandado de Segurança da Capital, no qual o impetrante é Claico Xavier Fernandes e impetrados o Governador do Estado e prefeito e vice de Florianópolis, São José e Palhoça.

O Juiz Relator inicia o Despacho indeferindo a “peça”, assim mesmo, citada entre aspas, “eis que se trata de um mero manuscrito disforme, ininteligível e sem qualquer sentido, nominado apenas como mandado de segurança”. O Juiz Relator menciona ainda o fato de a petição inicial não ter sido subscrita por advogado, mas pelo próprio impetrante, que já teria, conforme consulta no SAJ – Sistema de Automação do Judiciário, impetrado “outros mandados de segurança com pedidos teratológicos e desarrazoados”.

O Juiz Relator cita a decisão proferida em outro Mandado de Segurança, que por sua vez menciona um terceiro (!) no qual o impetrante é o mesmo, o Senador. A decisão é no sentido de o Poder Judiciário não perder mais tempo “com essas heresias, tanto doutrinárias como religiosas”, citando ainda que o impetrante não tem registro na Ordem dos Advogados do Brasil. Abaixo transcrevemos um trecho usado pelo Juiz Relator, citando um colega, para indeferir a petição inicial do Senador contra o governador e os prefeitos:

“Ora, do relato acima realizado, vê-se claramente a heresia do pedido formulado por Claico Xavier Fernandes, que em franco desrespeito para com o Poder Judiciário, tirando lugar de outros feitos que em seu lugar poderiam ser deslindados. É inadmissível que resida em juízo piada transvestida em processo que da simples tentativa de leitura ofenderia qualquer leigo, quiçá um julgador (?), que tem como função primordial a pacificação social, e não a apreciação da galhofa posta em juízo”.

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No Mandado de Segurança impetrado no Judiciário estadual, o Senador se apresenta como “Senhor do Brasil Profeta Claico Fernandes do Universo Entidade Animal e Espiritual, Maior e Forte do Reino Unido Profeta Claico Fernandes do Brasil por ordem do Criador da Espiritualidade e do Cosmos e do Olimpo”.

Lembrei de um trecho do Evangelho de Tomé, no qual Jesus diz:

“Vim pôr Fogo ao mundo
e eis que hei de preservá-lo,
até que arda.”


O Nosso Profeta não veio buscar a pacificação social.

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*Texto de Míriam Santini de Abreu publicado no blog Pobres & Nojentas em 18 de março de 2014. Clique aqui para acessar o link original.