Capa do álbum |
11/07/2013
Por Ana Russi
Apesar de já ter escutado milhares de vezes os dois discos
do Cravo-da-Terra, continuo na
dúvida se esta resenha não deveria ser sobre o segundo álbum, intitulado Infinito
Som e tão bom quanto o anterior. O que me levou a optar pelo primeiro
disco é que ele pode ser considerado uma vanguarda na produção artística
catarinense da primeira década deste milênio. Isso porque é um álbum que
experimenta diversos estilos sonoros nacionais e internacionais, sem que o
grupo perca sua identidade criativa – o que pode ser considerado uma ousadia
sonora, em tempos de tantos artistas imitativos e bandas que parecem ter saído
da mesma receita de bolo.
O Cravo-da-Terra foi
escolhido para o texto desta semana no Solo Catarina por ser um grupo que se destaca agregando diversas qualidades
importantíssimas para quem quer alçar voo com um trabalho autoral: os músicos
tocam muito bem; a vocalista se destaca pela originalidade interpretativa; todos
tratam a música com máxima seriedade e respeito; e quem conhece o grupo – seja
pelos CDs ou indo aos shows – acaba apaixonado pelo que ouve.
A primeira música do álbum Cravo-da-Terra é Baião
do Cambadinho, que passeia pelo terreno seguro das escalas nordestinas.
Logo em seguida vem Cravo, um diálogo surpreendente entre contrabaixo acústico,
violão e flauta. A canção nos convida a passear por montagens harmônicas e
rítmicas que não chegam a ser inéditas, mas raramente povoam as produções
musicais mais ordinárias.
O Vinil é o nome da terceira faixa, a qual revela uma
característica que aparecerá mais vezes no álbum: o trânsito da compositora Ive
Luna pelas linguagens musical e cênica, através da junção de textos de caráter teatral
com montagens sonoras de cenário. A canção Em Tempo, que vem logo em seguida,
também utiliza este recurso, porém aqui a paisagem construída é mais lírica e
contemplativa:
Na quinta faixa (Senhora) alguns elementos da cultura
catarinense emergem na bela composição de Mello que mescla preces e elementos
do mar. Na sequência, Olívia revela que o emprego de duas ou até três diferentes fórmulas de
compasso é outra característica marcante na musicalidade do Cravo-da-Terra, que não tem medo de
ousar quando se trata de ritmo e harmonia:
Dia indo, dia findo
peito fraco.
Sopa quente, afago frio.
Algia, cobertor.
Perna fina, meia comprida,
mil sois a pino,
um "Eu já vou".
Ele veste calmo
o seu sobretudo.
Ela esconde fundo
o seu sobressalto.
Noite rindo.
Noite vindo em rio a nado.
Nada feito: fardo.
Luz acesa, estrela pingando,
tempo estacando,
espelho vazio.
Ele entorna lento
o seu calendário.
Ela engole seco
o seu calafrio.
Mariola amarelou,
moça fina nem notou.
Vestido novo em flor,
tem prega, renda, passador
que enfeitam seu algor.
Olívia, composição de Ive Luna
A instrumental Fragata propõe uma navegação mental na paisagem sonora narrada pelo violino falante de Mello e endossada por pequenas percussões. Já a canção Milonga traz outra característica recorrente na musicalidade do grupo: o uso de prelúdios, que são composições preliminares, como se fossem uma “porta de entrada” para a música em questão. No caso desta música, o prelúdio é uma rítmica com sugestão sonora que soa indígena, seguido da milonga propriamente dita, que fala de cenários e memórias dos primeiros habitantes da Ilha de Santa Catarina, estabelecendo conexão com a sonoridade de abertura.
É redundante falar em ótimas composições se estou me
referindo à voz e flauta de Ive, ao contrabaixo acústico de Mateus Costa, ao
violão de Luís Coelho e ao violino e composições de Marcelo Mello. Cada
componente do grupo desempenha o seu papel com perfeito domínio técnico, e sem
subestimar a necessária dose de sensibilidade em cada faixa. E é nos poucos
instrumentos selecionados para cada canção que o grupo comprova que os timbres
escolhidos são suficientes e falam por si, dispensando arranjos megalomaníacos
e excessos de informação sonora.
Ficha técnica do CD |
Em Tudo Feito (faixa 12) há outro
prelúdio, desta vez uma levada meio barroca tocada com pandeiro. Apesar disso,
trata-se de uma pequena amostra da diversidade que rodeia este grupo, se
comparada à canção que segue, Alguidar de Aguiar, na qual
desfrutamos o máximo da criatividade, sensibilidade e inteligência desse grupo,
traduzido em arranjo onírico para voz, violão, violino e contrabaixo:
Para terminar, o grupo se despede com um Aviso
de Partida, na qual o grupo brinca com a sonoridade das sílabas, em
mais uma demonstração de criatividade no uso de recursos poéticos:
Depois de ouvir qualquer álbum do Cravo-da-Terra, é possível entender a grande distância que existe entre
ser músico e “tocar um solo de guitarra o mais rápido possível”. Da mesma
maneira, a beleza e a simplicidade da voz de Ive Luna nos ensinam que cantar não é uma concepção meramente
técnica, distante de sentir. O que
Ive faz é muito superior à lógica higienista dos programas de auditório atuais,
onde interpretar virou sinônimo de “fazer o maior número possível de malabarismos
vocais em um curto espaço de tempo”. Enfim... fazer música, para além das
funções recreativas, é mesmo uma enorme responsabilidade.
Vou partir já,
vim te avisar.
Visão tive de ter de ir.
Visão tive
de ter de ir já.
Vim te avisar: vou partir.
E quem segura o mar
nas ondas se arrebenta.
Melhor respiro a química lunar
do ar que me sustenta,
do que invento ar pra respirar
no colo que me alenta.
Aviso de Partida, composição de Ive Luna
Quem gostou de conhecer o Cravo-da-Terra pode esperar ansioso pelo terceiro álbum, Verde
Longe (ainda sem previsão de lançamento). Enquanto isso, delicie-se
assistindo ao Documentário de Roberto Saraiva sobre a banda (onde aparecem várias canções dos dois álbuns já
lançados), ou então dê uma olhada na página oficial e no Facebook
do grupo.