Este é um assunto sobre o qual sempre quis escrever. E nem
sou tão fã assim de ópera.
Não tive a oportunidade de assistir Catharina,
Uma Ópera da Ilha. E não lamento por isso, já que ela estreou
quando eu ainda tinha quinze anos, morava em Porto Alegre e ignorava a
miscelânea cultural presente em Santa Catarina. Possivelmente, se tivesse ido à
ópera, não teria sido impactada como fui, quando assisti ao seu registro
audiovisual, exibido posteriormente na Universidade.
Estreada em 1996 com texto de Bebel Orofino Schaefer, direção
de Lau
Santos e coordenação de Marisa Naspolini, Catharina,
Uma Ópera da Ilha é uma reunião de artistas de primeira linha,
somando esforços para realizar uma produção visivelmente trabalhosa, mas digna
de ser considerada uma real leitura artística da cultura ilhoa.
Para fins de pesquisa, anexo ao texto estão alguns vídeos e
áudios (em streaming) gravados à
época da estreia da Ópera. Embora eu tenha
conseguido melhorar bastante a qualidade (depois de um longo trabalho de
edição), os materiais apresentados vêm de registro em fita VHS e ainda
podem apresentar ruídos e falhas.
Segundo o texto que abre o vídeo-registro do espetáculo,
“Catharina,
uma ópera da ilha” foi construída a partir do ponto
de
vista de Sebastião Caboto (navegador veneziano que nomeou
o
então Porto dos Patos de Ilha de Santa Catarina, por volta de 1526).
Catharina
Medrano teria sido a musa inspiradora de Caboto,
que
chegou à ilha durante uma forte tempestade e teve
sua
caravela naufragada.
O
registro oficial atribui ao nome da atual capital de Estado de
Santa
Catarina a homenagem à Santa Catarina de Alexandria
(muito
popular durante a Idade Média), cujo dia comemorativo
é 25
de novembro, data do naufrágio.
Permanece
até hoje a dúvida sobre o fato de o nome
referir-se
à Catharina profana ou à Catharina santa”.
(CATHARINA,
1996)
A propósito, Caboto – o cartógrafo e explorador que em 1526
chegou à região visando alcançar o Rio da Prata – é o escolhido para
protagonizar o espetáculo. Sua aparição é precedida por duas canções tradicionais
que compõem o prelúdio e reaparecem constantemente, permeando toda a obra. A
primeira é o Rancho
de Amor à Ilha de Cláudio Alvim
Barbosa (Zininho), interpretada com certo toque de melancolia
marítima pelos metais de Marco Aurélio (famoso trombonista do bloco Baiacu de Alguém). Na sequência, entra
o grupo de 6 vozes com a linha melódica de Lagoa da Conceição (Barra da Lagoa) de
Orlando de Mello (Neco). As vozes, no
entanto, entoam um texto diferente, uma paródia que apresenta a Ilha da Magia a
partir de seus aspectos geográficos e enfatiza o fluxo migratório responsável
pelo crescimento populacional (tema tão recorrente quanto as músicas
supracitadas):
Ilha
pra quem vem do ar
Ilha
pra quem vem do mar...
(CATHARINA,
1996)
Este pequeno coro faz as vezes de “narradores-sonoplastas” e
divide a condução da história com o personagem Caboto. Entre os cantores, estão
Eduardo
Serafin e Jefferson Bittencourt dos Santos (tenores da Cantus Firmus). É na cantoria guiada
por eles que o momento seguinte se volta à temática indígena, dando ênfase nas
heranças kaigangs, sambaqueiras e
carijós:
Jurerê,
Peri,
Itacorubi
Ainhatomirim
Tapera
Sambaqui
Lança-se
ao mar
Joga-se
ao mar
Ita é
pedra
Ita é
pedra...
Risca
a pedra
Marca
e deixa
(CATHARINA,
1996)
Como aparece no vídeo, a ária dos indígenas é seguida de
referências à chegada de Caboto e o processo de colonização da ilha pelos
europeus. Neste aspecto, o cenário tem seu mérito, ao implantar uma caravela no
palco, cuja tripulação é a banda liderada por Carlos Augusto Vieira e seu
filho André
Luiz – atuais coordenadores da Orquestra
Escola da Fundação Franklin Cascaes.
Caboto reaparece:
Muitas
pessoas vão chegar, Catharina,
muita
gente vai chegar!
Vão
te chamar de Ilha dos Patos,
de
Nossa senhora do Desterro...
mas é
o teu nome, “Catarina”...
o que
vai ficar!
(CATHARINA,
1996)
O roteiro segue evocando a figura de
Francisco Dias Velho – fundador do Povoado de Nossa Senhora de Desterro – para
abrir uma ária alusiva à fé católica:
A execução da Ópera da Ilha
valoriza em todos os momentos a paisagem sonora, utilizando-a para a
caracterização de cada ambiente e época. Tanto o grupo de cantores, como a
orquestra e os próprios atores têm um papel sonoro decisivo para o andar da
peça. O texto acima, como pode ser constatado no áudio, é interpretado em
cantochão, o qual se mistura às rezas sussurradas dos personagens.
Neste contexto, ao realizar uma pesquisa sobre a ópera na
internet, encontrei uma menção do ex-governador catarinense Esperidião Amin em
pronunciamento no Senado Federal em 1996, mencionando que o pianista Artur Moreira Lima participou da
montagem. No entanto, tanto na ficha técnica como em outras fontes, não
consegui descobrir, exatamente, quando e como se deu esta participação.
Na sequência do espetáculo, ocorre uma dança ao som
aportuguesado da folclórica Alecrim Dourado. Curiosamente, a
dança se desenvolve tão graciosa quanto a sonoridade, mas é corrompida por uma
cena invasiva, que denota a atmosfera machista e a violência velada sofrida
pela mulher da época. Essa “quebra” dá o clima funesto para entrar na questão
do exílio de Caboto. O explorador foi condenado por desobedecer as ordens da
Coroa Inglesa e desviar a rota da embarcação para explorar o Rio da Prata. Em
referência a este momento, uma dança de traços renascentistas acompanhada de
uma cama harmônica arrastada acompanha o lamento de Caboto.
Uma cantoria arrastada retoma o mistério que envolve o nome Cat(h)arina e serve de prelúdio à dança
açoriana que a sucede:
Ilha
A
ilha que Caboto ofereceu a Catarina
Sebstião
Caboto dedicou à sua Catharina
E
Dias Velho pra nossa senhora do Desterro
Nosso
Desterro
A
terra que do mar se avista
Terra
à vista
Eles
chegaram
Elas chegaram
Da
ilha terceira do pico da madeira do faiol de São Jorge
Ilhéus
do Açores chegaram
Chegaram
Chegaram
Para
ocupar uma outra ilha
(CATHARINA,
1996)
Os cantores são cercados pelos dançarinos que fazem uma
performance fundada nas danças típicas. O desenrolar do espetáculo é dinâmico:
na mesma velocidade em que a “festa açoriana” se monta em pleno andamento da
peça, ela se desfaz e dá lugar à cena da insatisfação dos colonizadores ilhéus,
que vieram até estas terras atraídos por promessas de posses, terras, animais,
ferramentas, moradia e toda a forma de promessa jamais cumprida pela coroa
portuguesa. Caboto soma à decepção dos açorianos outros fatores que tornaram
suas vidas aqui um inferno distante do céu prometido pela atual “Ilha da
Magia”:
Homens
e mulheres vão chegar, Catarina, muitos deles!
Assim
como eu: torturados, cansados das muitas horas,
pelo
mar afora, Contra os ventos nos porões, com as crianças!
As
crianças nos porões!
Ao
chegar aqui, de mandioca nada entenderão!
Plantar
o trigo, eles não vão conseguir!
Todo
o começo é difícil...
É o
exercício de se lançar!
Eles
irão aprender muita coisa no teu chão!
(CATHARINA,
1996)
Importante ressaltar que a atividade operística na Ilha de
Santa Catarina não é recente. Desde a segunda metade do século XIX, a população
de Desterro já demonstrava grande interesse por trechos e árias de óperas
famosas, com ênfase na escola romântica italiana. Segundo Cabral (1970), em 1860 o casal
franco-dinamarquês Martin (rabequista) e Fanny Simonsen (cantora) circulavam
pela ilha executando trechos de Donizetti e Rossini entre outros. Neste
contexto, eram comuns também as Fantasias,
adaptações feitas com grande liberdade formal de obras musicais surgidas no
período da Renascença (Bennet, 1986, p. 31), mas que foram
empregadas por Mozart em maior escala (Michels, 1985, p. 399).
De acordo com Cabral (1970, p. 76), a primeira montagem
operística completa (incluindo todos os elementos cênicos) na ilha aconteceu
ainda no século XIX:
Em 1879, chegou, vinda
do Rio Grande, a primeira Companhia Líria que encenou no Destêrro: a grande
Companhia de Felix Verneuil, francesa, e ao que parece, não vinha muito bem das
finanças. Fêz a sua estréia a 12 de setembro com “Os Sinos de Corneville”, seguindo-se em ordem de representação,
três óperas de Offenbah: – La Gran
Duchesse, Orphée aux Enfers e La Via Parisienne, seguindo-se, depois,
a Filha do Regimento e a Filha de Mme. Argot.
Possivelmente, o primeiro registro de uma ópera composta em
Desterro é O Ermitão de Muquém, com música do José Brasilício de Souza
(nascido pernambucano, mas vivente na ilha desde os 2 anos de idade) e libreto
de Cândido Melquíades de Sousa (poeta e professor do Liceu de Artes, depois se tornaria
presidente da Intendência). Chegou a ter trechos executados para o público em
1883, mas nunca foi montada por completo (Cabral, 1970).
Um batuque de cacumbi
se segue, conduzido pelo percussionista Nicolas
Malhomme – francês que ainda hoje ministra cursos na ilha e que tem um
grande compromisso com a música brasileira de matriz africana. E quem dança o
cacumbi neste momento é a dançarina Adelice
Braga (Nêga), dançarina que acompanha Nicolas
no grupo Batukajé. Ela também
participa do Catharina,Uma Ópera da Ilha como
cantora.
Uma frase anuncia o que ainda está por vir:
Se
alevanta, boi malhado!
(CATHARINA,
1996)
Uma série de canções típicas do boi-de-mamão revelam uma
pesquisa minuciosa sobre o folguedo mais querido da Ilha. Esta ária apresenta
raras flexões de linguagem e alguns versos que por muito tempo foram esquecidos
à sombra de outros, mais populares:
A
folha do limoeiro
Tem
cheiro de limão
Morena,
me dá um beijo
Que
eu te dou meu coração
Ai,
ai, ai, meu boizinho é dançador
Ai,
ai, ai, moreninha é meu amor
Ô
dono da casa
Dá
sua licença
Pro
meu boi dançar
Na
sua presença
Alevanta,
boi dourado, alevanta devagar
Vem
cá meu boi, iaiá
Esse
boi não é daqui, é do sertão do Piauí
Vem
cá meu boi, iaiá
Esse
boi não é de lá, é do sertão do Paraná
Vem
cá meu boi, Iaiá
O meu
boi morreu
Que
será de mim?
Manda
buscar outro, maninha
Lá no
Piauí
Fizemo
um baile bonito
Fizemo
um baile de ??
Mas
tá chegando a hora
De
dançar a Maricota
A
Dona Maricota
Nariz
de pimentão
Deixou
cair as calça
Bem
no meio do salão
A
Dona Maricota
É
dama de caridade
Ela
veio se apresentar
Mas
vai estudar na faculdade
A
Dona Maricota
É
bonita e quer se casar
Uma
moça tão bonita
Vai
casar co’ Valdemar
Ô
dono da casa
Nosso
boi já vai
Nosso
boi já vai
Que
já tá na hora
Oi
cidade sim
Oi
cidade não
Bananeira
chorá, chorá
(CATHARINA,
1996)
Neste momento, a ópera já conquista tamanha empatia que cada
conclusão cênica cria uma agradável expectativa pelas cenas futuras. Chega
então a benzedeira, uma nativa supersticiosa à moda Cascaes, que faz um acréscimo especial à cena. Destaque também para
a trilha sonora tocada pela “orquestra embarcada”, que soma instrumentos não
convencionais à formação camerística para dar vida tragicômica à dança
alegórica e o voo macabro desenvolvidos por bruxólicas figurinhas:
O quebranto cênico é esmagado pela santidade do Terno,
imbricado pelas orações à padroeira de Desterro. Ali se revela o acordeonista –
ninguém menos que o grande Cristaldo Souza, do grupo Engenho – que atua como cantor e empresta uma beleza ímpar à cena:
Ò
senhor dono da casa
Abre
a porta e vê quem vem
Já
nasceu o deus menino, ai
Vi a
estrela de Belém
Minha
gloriosa Santa Catarina
Vós
foste aquela senhora
Que
na sexta-feira da Paixão, ai
Saíste
a caminhar pela rua do Jordão
Sete
mil homens encontraste
Bravos
como um leão
Todos
eles abrandaste
Com
palavras de religião
(CATHARINA,
1996)
Catharina, uma ópera da ilha
pode parecer uma montagem simples para os dias de hoje – ainda mais se
compararmos com Carmen, A Flauta Mágica, Rigoletto e outras montagens operísticas elaboradas por artistas
ilhéus na última década. No entanto, há 15 anos atrás, era um plano pretensioso
comprometer um elenco de 45 profissionais e uma infra-estrutura tal qual se
observa no vídeo. Assim, apesar do sucesso, após algumas apresentações o
orçamento do projeto se tornou impraticável. De acordo com Herbst (1998) quatro
anos depois, o trio Bebel Orofino, Lau
Santos e Marisa Naspolini fez uma releitura de seu
próprio espetáculo, na montagem Imaginária Ilha Catarina, mais cênica
e com uma mensagem de sustentabilidade mais pronunciada.
A famosa canção da Ratoeira também não deixou de
circunscrever o espetáculo. Este é o momento em que o Catharina
se mostra um espetáculo completo, com olhar voltado às origens humildes do
passado – e não o produto de uma pesquisa impessoal. Acredito que aqueles que
puderam assistir este espetáculo ao vivo não contiveram as lágrimas ao
testemunhar a vivacidade das senhorinhas ilhoas – a saber: Dona Dolíria, Dona Maria
e Dona Rosalina
– trazendo a beleza autêntica do nosso folclore, imbricada em suas vozes... Eu
não contive...
As fitas, dispostas no cenário desde o início do espetáculo,
servem ao folguedo do pau-de-fita que segue à saída das senhorinhas. A trilha,
então, lembra Açoreanas,
canção folclórica local famosa na interpretação do grupo Engenho.
Na sequência, os cantores-clowns retornam:
Carro-de-boi,
carreta, carretão,
Rede-feiticeira,
rede de arrastão
Pega
o peixe, tainha, camarão
Corvina,
garoupa, rede de cação
Descascar
a mandioca
Bate,
bate no algodão
Apanha,
apanha o feijão
E
bate, bate no algodão
Acorda
cedo, balaio de pitanga
Rema
pro mercado, enche a canoa
Eu
vou a pé, ela vai de baleeira
Eu
vou de cargueiro, Marina Morena
Vou
levar a minha renda
Pras
mulheres da cidade
A
minha renda, o meu crivo
A
minha renda, o meu bilro
Engenho
de farinha de mastro de rodete
Peneira,
amassa, ajusta o molinete
Rasga
a terra e planta
A
semente de abóbora
O que
eu quero é laranja
Tem
café, tem mandioca
Vou
passar no Si’ô dos Passos, oiá
Pra
fazer uma oração
Oiê,
oiá
(CATHARINA,
1996)
Retomo que todas essas entradas e atos são permeadas pelo frontman, Sebastião Caboto, sempre
enfatizando que, atraídos pela beleza, forasteiros de todos os lugares
aportarão na ilha.
Só
não sei ao certo se eles vão compreender tua beleza como ela deve ser
compreendida...
(CATHARINA,
1996)
Neste momento o espetáculo evolui para uma vista à contemporaneidade,
com o b-boy Dag Dgi dançando ao som funkeado
da banda. Destaque para o baixista Luiz Antônio Bier Maia (atual baixista do Coletivo Operante) e Marcelo Frias,
baterista do primeiro álbum do Secos
& Molhados, que à época deste espetáculo já residia em Florianópolis.
Não soa como simples coincidência a cena em que Caboto se
despede vir logo após um dos cantores referir ao aumento populacional da ilha e
toda a diversidade cultural e social que ela trouxe consigo. Retomando o tema
de Lagoa da
Conceição (Barra da Lagoa), os cantores cumprimentam o público e
dão boas vindas aos que ainda hoje chegam à cidade, para visitar ou morar. O
desfecho sintetiza os dois temas principais do espetáculo – Barra da Lagoa e
Rancho de Amor À
Ilha – adaptando a letra do segundo à melodia do primeiro:
Um
pedacinho de terra
Terra
perdida no mar...
(CATHARINA,
1996)
Uma versão bachiana do Rancho segue, acompanhada pela
dança do boizinho-de-mamão. A música evolui para uma batida rítmica moderna,
convidando todos os personagens – as bruxas, a nativa, as senhorinhas, os
dançarinos e cantores – a participar da despedida.
REFERÊNCIAS:
AMIN, E. Pronunciamento. Brasília, Senado
Federal, 27 de junho de 1996. Nota indicando o tipo de depoimento e nome do
entrevistador. Disponível em
.
Acesso em 14 de dezembro de 2013.
BENNET, R. Uma breve
história da música. Tradução de Maria Teresa Resende Costa. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1986.
CATHARINA, uma
ópera da ilha. Produção: Bebel Orofino Schaefer; Lau Santos; Marisa Naspolini. Florianópolis:
Trinta Por Segundo, 1996 [registro]. 1 filme (87 min), DVD, colorido. Cópia da FURB
– Universidade Regional de Blumenau.
CABRAL, O. R. A música em Santa Catarina no século XIX. In: EL-KHATIB, S.
M. História de Santa Catarina. Curitiba: Grafipar, v. 3, 1970. p. 61-85.
HERBST, R. Imaginário ilhéu retorna reciclado ao palco.
A Notícia, Joinville, 05 de junho de 1998, caderno Anexo. Disponível em:
. Acesso em 12 de dezembro de
2013.
MICHELS, U. Atlas de Musica. Tradução de León Mames. 2ª. ed.
Madrid: Alianza Editorial, v. 2, 1985.