24/10/2013
Por Ana Russi
Em uma das caçadas a materiais sonoros catarinenses que o Solo Catarina costuma realizar na internet, encontramos uma mina de ouro!
Capa da fita cassete |
Pois bem, um dos representantes deste seleto grupo dos bem
intencionados com a memória da música é Edson Luís de
Souza, morador de Jaraguá do Sul e sobrevivente da cena underground do norte de Santa Catarina.
Ele mantém o blog Demo-Tapes Brasil,
no qual disponibiliza seu grande acervo pacientemente catalogado e disponibilizado
para download.
Passeando pelo site, entre muitas boas lembranças, encontramos
o K-7 Isto Não É Tudo!! da banda Permissivos.
A banda “aconteceu” em Blumenau na década de 90, e apesar dos arranjos muito
elementares calcados no punk rock e hardcore, conquistou fãs com suas letras
originais, que dialogavam com a política e o cotidiano do Vale do Itajaí.
A fita começa com Pecados Capitais
– música que fala dos abismos sociais e do consumismo:
O mundo é maravilhoso quando se é rico,
bonito e famoso...
Trecho
de Pecados Capitais
Na sequência, 4 Semanas e Meia
e Um Funeral mira na futilidade das relações rasas e critica o
romantismo adocicado. O título tem mais sentido ao ser contextualizado na década
de 90, que começou com a explosão da música de massa – como a enjoativa balada Quatro semanas e meia de amor (da dupla
Luan e Vanessa), que tocou incessantemente nas rádios do Brasil – e nos
cinemas, foi atravessada pela produção exorbitante de comédias românticas tais
como a clássica Quatro Casamentos e Um
Funeral, a qual era embalada pelas canções “bonitinhas” do Yet Yet Yet. A composição da Permissivos,
bem mais agressiva, ataca a figura da “princesa” enquanto ícone da cultura de superficialidade
que ganhava volume em Blumenau e em todo o país.
A fita torna-se ainda mais interessante a partir da terceira
música, Ação Prolongada – momento que
relembra a invasão do Kuwait pelo Iraque, episódio que foi o estopim para a
Guerra do Golfo Pérsico. Embora o lançamento do K-7 Isto
Não É Tudo!! tenha ocorrido na década de 90, é interessante como
a composição tem um tom meio premonitório, antecipando os eventos que se
estenderam durante 15 anos após a circulação da fita. Nela, o grupo se
posiciona contra o Iraque por este ser o “lado forte” da ocasião, ao iniciar
uma violenta ação contra o minúsculo país vizinho. A letra não poupa ninguém:
ataca desde o fundamentalismo religioso até a omissão “interessada” da
Organização das Nações Unidas. Depois dizem que rock não é música educativa...
Na década de 90, que para muitos é considerada “a última do
verdadeiro rock”(*), a Permissivos
tocou ao lado de bandas importantes da região, como a The
Zordem (em atividade até hoje), e abriu shows de bandas como a
gaúcha Maria do Relento. O guitarrista Cristiano
atualmente integra a banda Stuart.
A composição Um rapaz
romântico tem ideia semelhante à da primeira faixa. Um punk rock bem clássico (aceleração, poucos
acordes, bateria sem variações) para anunciar a negação a “cravos na lapela”, “mandar
flores” e outras atitudes típicas dos “príncipes”.
Cerveja, a quinta música, está
entre as melhores do álbum, por ser a mais criativa e bem arranjada, com uma
levada hardcore que lembra o Ultraje
a Rigor. A letra é uma primorosa homenagem aos encontros sociais e intelectuais
promovidos pela bebida (vamos lembrar que a banda é de Blumenau, terra onde a
cerveja é quase uma religião). Pra quem aprecia (a bebida, a banda e/ou o
gênero), vale a pena escutar:
Na sequência, o grupo passeia no mundo obscuro da
prostituição, fazendo uma descrição superficial, mas verdadeira, dos negócios
de agências de acompanhantes, em Satisfação
Garantida (“ou seu dinheiro de volta”).
Embora Isto Não É
Tudo!! não seja um exemplo de capricho em termos de produção
musical, merece atenção o caráter transgressor presente integralmente no álbum.
Em seu livro Rock and Roll: Uma História
Social, Paul Friedlander, caracteriza o punk
como
um estilo heterogêneo,
compreendendo uma miscelânea complexa de ingredientes e orientações, que se
espalhou sobre uma infinidade de artistas. Palavras eram vomitadas por
vocalistas sem noções prévias de tom e melodia. A maioria das letras refletia
sentimentos em relação à sociedade corrupta e em desintegração à situação
difícil dos companheiros da subcultura. A música e as letras revelavam uma
atitude de confrontação que refletia graus variados de ódio justificado, de
performance técnica, exploração artística do choque de valores e intenção de
renegar as instituições oficiais de produção de música (2004, p. 352).
Assim, a Permissivos merece destaque pela sólida participação
na construção do rock blumenauense daquela década. Era uma banda querida do
público pela atitude punk que gritava
na desorganização dos arranjos, nos solos de guitarra tocados fora da harmonia,
no vocal um tanto desafinado, na diversão garantida de seus shows e em letras
que traziam críticas criativamente construídas. Este comportamento é evidente
sétima faixa, Le Etat Et Moi, quando o
grupo volta a mostrar seu lado mais politizado:
Eu mando nessa porra, quem mandou me
eleger?
Eu sou o estado, você tem que obedecer
Enquanto estiver aqui e o meu mandato
exercer
Eu posso fazer tudo o que eu bem entender!
Sentado no Planalto eu vejo o povo se foder
De braços cruzados, vendo tudo acontecer!
Se o caldo engrossar, viajo para o
exterior,
Deixando toda a merda para o meu sucessor!
Povo ignorante, gosta de ser enganado!
Não percebe a corrupção comendo solta no
Senado?
Por que eu deveria dar verbas à educação,
Se a cultura é uma arma, quando posta em
certas mãos?
Letra
de Le Etat Et Moi
A música de encerramento denomina-se Festa
Alemã e traça, de
certa forma, um retrato das edições da Oktoberfest dos anos 90 em Blumenau. Tudo bem que
hoje a festa está reduzida a especulação da embriaguez e do sexo fácil, ambos
travestidos de uma pseudo-germanidade que não tem nada a ver com a real
história da colonização do Vale. Mas em outros tempos, a Oktober foi uma festa muito rock ‘n’ roll, chegando mesmo a ter
festivais agregados onde o público conferia grandes shows de bandas nacionais. A
música em questão aborda de forma divertida este processo de transição para uma
festa muito mais turística e mais distante deste gênero musical.
A fita Isto Não É
Tudo!! da banda Permissivos,
está disponível para download neste link disponibilizado pela Demo-Tapes
Brasil. Vale a pena, também dar uma boa olhada em todo o site, já que o organizador
separa as músicas por faixa, digitaliza os encartes, fornece dados sobre as
bandas e até fotografa os cassetes! Pra quem viveu a cena metal, indie, folk e punk registrada nestas pequenas joias magnéticas por todo o Brasil,
a visita é obrigatória.
Você também pode conferir
trabalhos de bandas catarinenses disponíveis no site, clicando aqui. Enquanto novas postagens
do Solo Catarina não
aparecem, divirta-se viajando no tempo com as fitinhas!
* Para alguns
estudiosos, a concepção clássica de rock teve seu “sepultamento’ com o
lançamento do álbum OK Computer, da
banda britânica Radiohead, em 1997. O disco causou impacto com uma proposta
estéril e fria, predizendo a queda do gênero e ascensão de outras propostas
ligadas ao pop e à música eletrônica.
Segundo Carlos Eduardo Lima,
o disco “modificou a música feita na Inglaterra e
abriu espaço para algo ainda mais distante e plástico”. Para saber mais, leia
aqui.
FRIEDLANDER, P. Rock and
roll: uma história social. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
(Fonte das imagens: Demo-Tapes Brasil)