Vou usar minha razão
Eu vou mudar esta história
Com o meu boi de mamão
Trecho da música Vou Botá Meu Boi Na Rua
Pode parecer meio óbvio escolher o álbum do Engenho, Vou Botá Meu Boi Na Rua, para começar a
nova temporada de resenhas do blog. Acontece que, nesta “primavera” de
manifestações que floresce em pleno início de inverno no Brasil, não dá pra
deixar de citar o mais saliente manifesto sonoro pela valorização da arte e da
cultura popular catarinense.
É desnecessário contar toda a história do grupo Engenho – o
principal você pode ler aqui e aqui, se quiser conhecer um pouco mais.
Vamos diretamente ao disco Vou Botá Meu
Boi Na Rua, que foi lançado em 1981 e
é bem mais do que apenas mais um álbum de uma banda daqui. O Vou Botá... é uma perfeita tradução sonora da paisagem
cultural de regiões diversas do estado – predominantemente oeste e litoral. Não
é à toa que a primeira faixa do vinil, Baião
de Milhões, basicamente apresenta a cosmopolia do grupo:
Sou daqui, sou do mato
Sou da vida, sou da morte
Leste, oeste, centro-oeste
Sou do sul e sou do norte
Na sequência, vem Barra
da Lagoa (ou Lagoa da Conceição,
como prefere denominar Neco, o autor da música). A composição está entre as
mais conhecidas do Engenho, inclusive tendo sido tema de uma ópera nos anos 90
(sobre a qual falaremos em outro momento). Talvez só perca, em popularidade,
para Lua Mansa, cuja beleza brejeira
imediatamente nos transporta às serestas do passado.
Puleiro dos Anjos
é a próxima faixa. É instrumental, dura cinco minutos e mostra a destreza e a
pureza sonora que se obtém quando músicos do naipe de Alisson, Cristaldo,
Marcelo, Frazê e Chico trabalham juntos.
É impossível ouvir o álbum e não viajar por uma Santa
Catarina memorial... Depois da cantiga folclórica Boitatá,
navegamos até o final do lado A do LP em tom de procissão com os Pescadores:
Ao virar o disco, a viagem segue rumo a oeste, quando os Recuerdos cantados em dialeto
fronteiriço e acompanhados pelo cavabandorango de Alisson nos colocam no ponto de
encontro entre Santa Catarina e Argentina. A sanfona falante de Cristaldo é a
ponte para o agito serrano de Nó cego,
a qual é interrompida pela introspecção do bandolim de Marcelo em Calabouço (composição que foi trilha de
uma peça teatral de Clácio Espezim, quando o grupo ainda era chamado Vzero).
Em Pedra do Moinho
já começamos a compreender a identidade autoral de alguns integrantes do
Engenho. As letras de Alisson constantemente carregam um componente popular
muito forte, marcado principalmente pelo recurso da repetição e da tradução
cultural em frases simples que ganham sentido ao serem conectadas pela linguagem
popular:
A pedra do moinho quebrou
A pedra do moinho quebrou
O amor da morena se acabou
A toada Feijão com Caviar é uma canção simples no seu arranjo (executado apenas com violão e
uns poucos itens de percussão), mas que chama a atenção para a forte oposição
semântica da letra, carregada de antíteses culturais e lingüísticas. Fiquei
surpresa ao descobrir, lendo o encarte do vinil, que esta música vem dos
folguedos do Divino e do Terno-de-Reis.
João e Maria, ai, ai
Arroz e feijão
Panela, bacia,
Barriga vazia
Mosquito, injeção
John and Mary
Wischy*, poodle, bar
Estola, smoking, piscina,
Rolls Royce, caviar
* “Wischy” é a escrita
apresentada no encarte do álbum.
A última música do lado B é a que dá nome ao disco. Ela desenvolve
o manifesto que encerra o texto do encarte e incita o povo a mostrar sua força,
através de uma união que se concretizava na unidade identitária do
boi-de-mamão. Uma união tão necessária quanto a que se faz nos manifestos de hoje,
se pensarmos na grave recessão econômica atravessada pelo país na época do
lançamento do álbum. Por sinal, época do governo Figueiredo – o mesmo que, no
ano anterior, foi hostilizado pelos manezinhos no episódio da Novembrada.
Todo esse repertório é acompanhado de arranjos
cuidadosamente preparados, sendo constantemente acrescido de sons de molhos de
materiais diversos que ora lembram o sacudir de uma rede, ora remetem à
agitação dos bilros da rendeira, o estalar das conchas pisadas na praia ou as
ondas do mar. Algumas faixas são atravessadas por gravações mais caseiras, de
manifestações culturais da época, como o Boi do Allan; outras trazem coros,
vocais de cantiga e palmas, sempre remetendo a detalhes de arranjo bastante tradicionais
nos folguedos catarinas. Essa soma faz de Vou
Botá Meu Boi Na Rua um álbum irrepreensível, feito à mão, que ainda inspira
trabalhos da atualidade.
Voltando mais uma vez a este novo tempo de manifestos, nada
mais adequado do que encerrar a resenha com a frase final do texto de
apresentação (que você pode ler, na íntegra, clicando no texto da contracapa do disco):
O próprio grito “VOU
BOTÁ MEU BOI NA RUA” denota, ao mesmo tempo uma homenagem ao boi-de-mamão já à
beira do esquecimento, e um grito de revolta, de inconformismo.