ZECA NUNES PIRES – A Antropóloga (2011)

18/12/2014
Por Fernando Vugman*

[Aviso: contém spoilers]

Cartaz do filme
Eu poderia dizer que o filme A Antropóloga (2010), do diretor Zeca Pires, é um filme bem feito. Seria uma afirmação fácil de comprovar. Bastaria chamar a atenção para o roteiro envolvente, para sua narrativa sedutora, graças a uma montagem competente. Ou comentar sobre o bom elenco, que nos convence como se fossem “nossos vizinhos”. Poderia também elogiar a bela fotografia e a escolha dos cenários, além da trilha sonora que ajuda na construção da narrativa de forma eficiente. Tudo isto é verdade, mas também seria injusto parar por aí.

Assim, permitam-se falar um pouco sobre esse e aquele detalhe que me encantaram durante sua projeção na pré-estreia.

Logo no início, quando a história a ser contada ainda está por se apresentar, sentimos um estranho deslocamento, geográfico, cultural, quase físico. É que, sem aviso, somos colocados diante das imagens de uma igrejinha caiada, de arquitetura simples, rodeada por uma vegetação familiar e temos certeza que o que vemos é um dos recantos da Ilha de Santa Catarina. Mas os diálogos logo nos contradizem: é nos Açores que a cena transcorre! E por um segundo nós, nativos e moradores da Ilha, nos sentimos pertencendo ao mesmo tempo a um “lá” e a um “aqui”, a um “outrora” e a um “agora”. Sensação que teremos ao longo de toda a história.

E essas brincadeiras que talvez só o cinema permita fazer, seguem ao longo do filme, constituindo um dos ingredientes que o tornam mais do que apenas um filme bem feito, uma história bem narrada; em torno da trama principal, muitas outras “pistas” insistem em desviar nosso olhar para uma infinidade de mais histórias possíveis.

Por exemplo, a fugaz aparição do próprio Zeca Pires a embarcar para a Costa da Lagoa, logo atrás da protagonista, se torna mais do que uma pequena homenagem ao mestre do suspense hollywoodiano. É um aviso sutil de que com A Antropóloga estamos também embarcando numa trama de mistério e suspense.

E certamente não é por acaso que as imagens turísticas da Ilha, que ilustram a chegada de Malú (Larissa Bracher) a Florianópolis, logo cedem lugar à Lagoa da Conceição e sua costa. Como num bom suspense, Zeca nos oferece um pouco de céu e sol radiante acima de um mar sem fim, para que tomemos fôlego, antes do mergulho num universo simultaneamente sedutor e sombrio.


Aliás, encantei-me com o tratamento da luz. As cenas diurnas exibem uma mistura de luz clara e sombras bem marcadas que confundem nossos sentimentos: celebramos a beleza da paisagem, ou nos recolhemos com medo sob seus profundos mistérios? Nas cenas noturnas, em delicadas tomadas que nos envolvem de escuridão e suspense, novamente uma luz sempre brilha, nos lembrando que mesmo a mais negra escuridão oferece, ainda que fugazmente, um brilho de sedução.

E a opção pela Costa como cenário principal definitivamente contribui para criar essa profusão de emoções contraditórias. Confesso que a cada cena em que os personagens perambulam pela mata eu me surpreendia com sua atmosfera assombrada, justo ali, por onde tantas vezes caminhei em dias de sol, admirando cada árvore, cada pássaro e a luminosidade acolhedora a filtrar entre as folhas. Habilmente, o filme transforma a mata numa floresta cheia de magia, espíritos, encantada, assombrada.

E do mesmo modo como Hitchcock é convidado a visitar o suspense “Mané”, também Spielberg e seu E.T. devem se render às bruxas de nossa Ilha. Se na cena do barco que voa no céu noturno, cruzando na frente de uma enorme lua, somos remetidos ao conhecido filme do diretor hollywoodiano, são os desenhos de Cascaes, permeando a trama, que vem para nos divertir e assustar.

As tomadas aéreas da Costa e da Lagoa quase nos colocam na vassoura da bruxa, ou nos provocam um mal estar sutil, de quem se sente, de repente, malignamente observado.

Cena do filme (foto: site oficial)
E por falar em cinemas de outras terras, o filme também traz sua pitada de neorrealismo italiano aoinserir as entrevistas com verdadeiros (e antigos!) habitantes da Costa da Lagoa. Aqui, Zeca evita habilmente um problema que muitas vezes marcou os filmes daquela escola: a interrupção da narrativa para incluir material “documental”. Em A Antropóloga, ao contrário, a participação dos não atores contribui de forma definitiva para aumentar o envolvimento com a trama; são momentos que ao mesmo tempo provocam o riso, despertam a curiosidade, mas nos lembram que estamos imersos em um universo maliciosamente misterioso e encantado.

Muitos mais são os detalhes que fazem de A Antropóloga um filme rico e envolvente. O cuidado com o sotaque açoriano, a recusa em criar um envolvimento amoroso entre Malú e Adriano (Luigi Cutolo), tentação fácil a que tantos filmes se rendem. O trio de adolescentes góticos que, se por um lado servem de alívio cômico, por outro, justamente por serem apresentados como feiticeiros amadores, aumentam a sensação de seriedade e perigo da “verdadeira” magia dos moradores da Costa. O jeito de filmar a Lagoa até quase transformá-la em mar. O delicado final, com A Antropóloga partindo de barco, lágrima nos olhos, para sempre transformada, e o sapateado de Carolina (Rafaela Rocha de Barcelos), discretamente alegre, como uma promessa de leveza no ar.

Assim foi que deixei a sala de projeção. Após noventa minutos de cinema, saí agradecido por ter sido lembrado e convencido de que vivo, a cada dia, numa Ilha da Magia.

*Resenha originalmente publicada no blog do filme, em 03 de maio de 2011 (link original).
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