18/12/2014
Por Fernando
Vugman*
[Aviso: contém spoilers]
Cartaz do filme |
Eu poderia dizer
que o filme A Antropóloga (2010), do diretor Zeca Pires, é um filme bem feito. Seria uma afirmação fácil de
comprovar. Bastaria chamar a atenção para o roteiro envolvente, para sua
narrativa sedutora, graças a uma montagem competente. Ou comentar sobre o bom
elenco, que nos convence como se fossem “nossos vizinhos”. Poderia também
elogiar a bela fotografia e a escolha dos cenários, além da trilha sonora que
ajuda na construção da narrativa de forma eficiente. Tudo isto é verdade, mas
também seria injusto parar por aí.
Assim,
permitam-se falar um pouco sobre esse e aquele detalhe que me encantaram
durante sua projeção na pré-estreia.
Logo no início,
quando a história a ser contada ainda está por se apresentar, sentimos um
estranho deslocamento, geográfico, cultural, quase físico. É que, sem aviso,
somos colocados diante das imagens de uma igrejinha caiada, de arquitetura
simples, rodeada por uma vegetação familiar e temos certeza que o que vemos é
um dos recantos da Ilha de Santa
Catarina. Mas os diálogos logo nos contradizem: é nos Açores que a cena
transcorre! E por um segundo nós, nativos e moradores da Ilha, nos sentimos pertencendo ao mesmo tempo a um “lá” e a um
“aqui”, a um “outrora” e a um “agora”. Sensação que teremos ao longo de toda a
história.
E essas
brincadeiras que talvez só o cinema permita fazer, seguem ao longo do filme,
constituindo um dos ingredientes que o tornam mais do que apenas um filme bem
feito, uma história bem narrada; em torno da trama principal, muitas outras
“pistas” insistem em desviar nosso olhar para uma infinidade de mais histórias
possíveis.
Por exemplo, a
fugaz aparição do próprio Zeca Pires
a embarcar para a Costa da Lagoa,
logo atrás da protagonista, se torna mais do que uma pequena homenagem ao
mestre do suspense hollywoodiano. É um aviso sutil de que com A
Antropóloga estamos também embarcando numa trama de mistério e
suspense.
E certamente não
é por acaso que as imagens turísticas da Ilha,
que ilustram a chegada de Malú (Larissa Bracher) a Florianópolis, logo cedem lugar à Lagoa da Conceição e sua costa. Como num bom suspense, Zeca nos oferece um pouco de céu e sol
radiante acima de um mar sem fim, para que tomemos fôlego, antes do mergulho
num universo simultaneamente sedutor e sombrio.
Aliás,
encantei-me com o tratamento da luz. As cenas diurnas exibem uma mistura de luz
clara e sombras bem marcadas que confundem nossos sentimentos: celebramos a beleza
da paisagem, ou nos recolhemos com medo sob seus profundos mistérios? Nas cenas
noturnas, em delicadas tomadas que nos envolvem de escuridão e suspense,
novamente uma luz sempre brilha, nos lembrando que mesmo a mais negra escuridão
oferece, ainda que fugazmente, um brilho de sedução.
E a opção pela
Costa como cenário principal definitivamente contribui para criar essa profusão
de emoções contraditórias. Confesso que a cada cena em que os personagens
perambulam pela mata eu me surpreendia com sua atmosfera assombrada, justo ali,
por onde tantas vezes caminhei em dias de sol, admirando cada árvore, cada
pássaro e a luminosidade acolhedora a filtrar entre as folhas. Habilmente, o
filme transforma a mata numa floresta cheia de magia, espíritos, encantada, assombrada.
E do mesmo modo
como Hitchcock é convidado a visitar o suspense “Mané”, também Spielberg e seu E.T. devem se render às bruxas de nossa
Ilha. Se na cena do barco que voa no céu noturno, cruzando na frente de uma
enorme lua, somos remetidos ao conhecido filme do diretor hollywoodiano, são os
desenhos de Cascaes, permeando a trama, que vem para nos divertir e assustar.
As tomadas aéreas
da Costa e da Lagoa quase nos
colocam na vassoura da bruxa, ou nos provocam um mal estar sutil, de quem se
sente, de repente, malignamente observado.
Cena do filme (foto: site oficial) |
Muitos mais são
os detalhes que fazem de A Antropóloga um filme rico e envolvente. O cuidado
com o sotaque açoriano, a recusa em criar um envolvimento amoroso entre Malú e Adriano (Luigi Cutolo),
tentação fácil a que tantos filmes se rendem. O trio de adolescentes góticos
que, se por um lado servem de alívio cômico, por outro, justamente por serem
apresentados como feiticeiros amadores, aumentam a sensação de seriedade e
perigo da “verdadeira” magia dos moradores da Costa. O jeito de filmar a Lagoa
até quase transformá-la em mar. O delicado final, com A Antropóloga partindo de
barco, lágrima nos olhos, para sempre transformada, e o sapateado de Carolina (Rafaela Rocha de Barcelos), discretamente alegre, como uma promessa
de leveza no ar.
Assim foi que
deixei a sala de projeção. Após noventa minutos de cinema, saí agradecido por
ter sido lembrado e convencido de que vivo, a cada dia, numa Ilha da Magia.
*Resenha
originalmente publicada no blog do filme, em 03 de maio de 2011 (link original).
Para saber mais
sobre A Antopóloga, clique aqui.