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CRAVO-DA-TERRA – Cravo-da-Terra (2006)


Capa do álbum
11/07/2013

Apesar de já ter escutado milhares de vezes os dois discos do Cravo-da-Terra, continuo na dúvida se esta resenha não deveria ser sobre o segundo álbum, intitulado Infinito Som e tão bom quanto o anterior. O que me levou a optar pelo primeiro disco é que ele pode ser considerado uma vanguarda na produção artística catarinense da primeira década deste milênio. Isso porque é um álbum que experimenta diversos estilos sonoros nacionais e internacionais, sem que o grupo perca sua identidade criativa – o que pode ser considerado uma ousadia sonora, em tempos de tantos artistas imitativos e bandas que parecem ter saído da mesma receita de bolo.

O Cravo-da-Terra foi escolhido para o texto desta semana no Solo Catarina por ser um grupo que se destaca agregando diversas qualidades importantíssimas para quem quer alçar voo com um trabalho autoral: os músicos tocam muito bem; a vocalista se destaca pela originalidade interpretativa; todos tratam a música com máxima seriedade e respeito; e quem conhece o grupo – seja pelos CDs ou indo aos shows – acaba apaixonado pelo que ouve.

A primeira música do álbum Cravo-da-Terra é Baião do Cambadinho, que passeia pelo terreno seguro das escalas nordestinas. Logo em seguida vem Cravo, um diálogo surpreendente entre contrabaixo acústico, violão e flauta. A canção nos convida a passear por montagens harmônicas e rítmicas que não chegam a ser inéditas, mas raramente povoam as produções musicais mais ordinárias.

O Vinil é o nome da terceira faixa, a qual revela uma característica que aparecerá mais vezes no álbum: o trânsito da compositora Ive Luna pelas linguagens musical e cênica, através da junção de textos de caráter teatral com montagens sonoras de cenário. A canção Em Tempo, que vem logo em seguida, também utiliza este recurso, porém aqui a paisagem construída é mais lírica e contemplativa:


Na quinta faixa (Senhora) alguns elementos da cultura catarinense emergem na bela composição de Mello que mescla preces e elementos do mar. Na sequência, Olívia revela que o emprego de duas ou até três diferentes fórmulas de compasso é outra característica marcante na musicalidade do Cravo-da-Terra, que não tem medo de ousar quando se trata de ritmo e harmonia:


Dia indo, dia findo
peito fraco.
Sopa quente, afago frio.
Algia, cobertor.
Perna fina, meia comprida,
mil sois a pino,
um "Eu já vou".

Ele veste calmo
o seu sobretudo.
Ela esconde fundo
o seu sobressalto.

Noite rindo. 
Noite vindo em rio a nado.
Nada feito: fardo.
Luz acesa, estrela pingando,
tempo estacando,
espelho vazio.

Ele entorna lento
o seu calendário.
Ela engole seco
o seu calafrio.

Mariola amarelou,
moça fina nem notou.
Vestido novo em flor,
tem prega, renda, passador
que enfeitam seu algor.


Olívia, composição de Ive Luna

A instrumental Fragata propõe uma navegação mental na paisagem sonora narrada pelo violino falante de Mello e endossada por pequenas percussões. Já a canção Milonga traz outra característica recorrente na musicalidade do grupo: o uso de prelúdios, que são composições preliminares, como se fossem uma “porta de entrada” para a música em questão. No caso desta música, o prelúdio é uma rítmica com sugestão sonora que soa indígena, seguido da milonga propriamente dita, que fala de cenários e memórias dos primeiros habitantes da Ilha de Santa Catarina, estabelecendo conexão com a sonoridade de abertura.


É redundante falar em ótimas composições se estou me referindo à voz e flauta de Ive, ao contrabaixo acústico de Mateus Costa, ao violão de Luís Coelho e ao violino e composições de Marcelo Mello. Cada componente do grupo desempenha o seu papel com perfeito domínio técnico, e sem subestimar a necessária dose de sensibilidade em cada faixa. E é nos poucos instrumentos selecionados para cada canção que o grupo comprova que os timbres escolhidos são suficientes e falam por si, dispensando arranjos megalomaníacos e excessos de informação sonora.

Ficha técnica do CD
Na faixa instrumental A Aranha, percebe-se o poder descritivo das composições instrumentais do Cravo-da-Terra, assim como o cuidado na escolha do título das músicas, que têm estreita relação com os arranjos apresentados. As delicadas e inteligentes junções sonoras continuam com a introdução em compasso de sete tempos de Eu chego lá (que reverte para uma rítmica fronteiriça), assim como na levada inocente de Manhã de Maria:

Em Tudo Feito (faixa 12) há outro prelúdio, desta vez uma levada meio barroca tocada com pandeiro. Apesar disso, trata-se de uma pequena amostra da diversidade que rodeia este grupo, se comparada à canção que segue, Alguidar de Aguiar, na qual desfrutamos o máximo da criatividade, sensibilidade e inteligência desse grupo, traduzido em arranjo onírico para voz, violão, violino e contrabaixo:


Para terminar, o grupo se despede com um Aviso de Partida, na qual o grupo brinca com a sonoridade das sílabas, em mais uma demonstração de criatividade no uso de recursos poéticos:

Vou partir já,
vim te avisar.
Visão tive de ter de ir.
Visão tive
de ter de ir já.
Vim te avisar: vou partir.

E quem segura o mar
nas ondas se arrebenta.
Melhor respiro a química lunar
do ar que me sustenta,
do que invento ar pra respirar
no colo que me alenta.

Aviso de Partida, composição de Ive Luna

Depois de ouvir qualquer álbum do Cravo-da-Terra, é possível entender a grande distância que existe entre ser músico e “tocar um solo de guitarra o mais rápido possível”. Da mesma maneira, a beleza e a simplicidade da voz de Ive Luna nos ensinam que cantar não é uma concepção meramente técnica, distante de sentir. O que Ive faz é muito superior à lógica higienista dos programas de auditório atuais, onde interpretar virou sinônimo de “fazer o maior número possível de malabarismos vocais em um curto espaço de tempo”. Enfim... fazer música, para além das funções recreativas, é mesmo uma enorme responsabilidade.

Quem gostou de conhecer o Cravo-da-Terra pode esperar ansioso pelo terceiro álbum, Verde Longe (ainda sem previsão de lançamento). Enquanto isso, delicie-se assistindo ao Documentário de Roberto Saraiva sobre a banda (onde aparecem várias canções dos dois álbuns já lançados), ou então dê uma olhada na página oficial e no Facebook do grupo.